sábado, 27 de agosto de 2011

Amanhecer no jardim dos prazeres

Acordo e é madrugada: Os galos cantam e ainda é escuro. Um galo só não levanta o sol, o dia será maior com a ida a Oficina Brennand  e do Instituto homônimo.  Ao mesmo tempo estou incerto se é sonho ou mesmo algo concreto. Em questão de minutos embarco no ônibus com os alunos rumo ao Recife. Seria a nova exploração dentro de Pernambuco, já foram tantas idas para a mauriceia: carnavais, semana santa e fins de semana pelas ruas do Recife antigo que nem sei mensurar a quantidade, mas agora era uma busca por algo desconhecido no subúrbio da cidade. Os bairros na periferia recifense tem seus encantos no cotidiano dos moradores e nas festas de ruas.
Li que desde de 1971 existia o espaço que foi Olaria ( antiga fábrica de tijolos e telhas ), onde o pai dele tinha um engenho: Santos Cosme e Damião. Somente  anos atrás fiquei sabendo do lugar, tipo informações boca-a-boca. Vi um vídeo curto sobre o lugar, porém estar no lugar é outra coisa. Controlei a ansiedade e o mistério fez o resto.  Talvez acordasse e desse de cara com a sensação de pesadelo. Não duvido disso: ir ao Recife é se aventurar no inesperado. Tenho experiências próprias e elevo a frase a condição de dogma. o sol lentamente vai aparecendo, os sentimentos afloram e a neblina na paisagem banha o ônibus.
Café com coxinha: os alunos se agrupam por afinidades, se abraçam com se tivessem frio e conversam baixinho enquanto tomam café. Quando se falar em Recife, penso que o caju poderia ser a fruta do paraíso. A cidade se tornou o céu  para uns ou inferno coletivo para outros. Sem atropelos todos sobem no ônibus e prosseguimos a viagem. Viajar é um exercício de deslocamento em todos os sentidos. A música é outra viagem dentro do percurso. Ponto de divisão nas cadeiras, interferi deliberando um repertório de Tim Maia a Reginaldo Rossi. Um grupo pede para colocar pop e rock, certo. A democracia sofre nessas horas. Já saímos da Paraíba, os canavais dominam a paisagem embora tenho um pouco da mata Atlântica pelos cantinhos do horizonte.
A chegada a Recife: Os morros com casas, as turma vai classificando como feias. Logo se vê que geografia passou longe do conhecimento. Tudo bem, chegamos dentro do horário e as nove horas entramos numa área de mata Atlântica que nos leva a Oficina. Ninguém elogia a área verde. O tom das conversas mudam entre eles. Os comentários são se voltando para o que vem do lado de fora do  ônibus. Parece que estamos com 50 horas de espera, mas foram só cinco minutos de verde.
No caminho de barro:  Avistamos um casal caminhando, cada um com cajado  e mochila nas costas, eu e Deisy pensamos simultaneamente, mas ela comenta: peregrinos de Santiago de Compostela... Concluo, os anjos em fuga. Vemos a Olaria que ainda nessa hora não há visitantes. Um ou outro funcionário é percebido e acostumado com a cena, trabalha indiferente. Nos dirigimos a portaria. Damos a instrução ao grupo de como se porta dentro do lugar.


Pela estrada já tenho a conclusão antes de ver por dentro: um lugar único. Não é pesadelo ou furada, um sonho possível. Desço por primeiro, quero ver o local sem gente, meio vazio. Faço um giro lentamente em volta de mim mesmo. Os prédios constituem-se num conjunto arquitetônico para ser povoado internamente por objeto de arte e gente para admirá-los. As obras são grandiosas e pequenas no sentido de harmonizar os espaços distribuídos. O detalhe está na questão Nordeste dos personagens e animais. Acredito que isso corre pela relação direta com o movimento armorial cuja a personificação é Ariano Suassuna, mas que Francisco Brennand participou traduzindo em esculturas. A literatura de Cordel se faz em obras de cerâmica. Hoje as obras do artista  se expandiu além do lugar para outras fronteiras pós Capibaribe e  movimento armorial.
Os prazeres sem ensinamentos: A visita não é guiada, então deixa a curiosidade e os sentidos serem maiores do que as informações precisas e mecânicas dos roteiros. A turma se espalha de la para cá, um ou outro aparece. Fotos são registradas com eles em posições diversas. Agora são partes da memória do local. A presença de outros visitantes começa  aparecer, turistas sozinhos e alunos de escolas públicas.



Fico observando tentando interpretar cada peça exposta. Traduzi-las para uma questão simples ou óbvia do que vejo: corpo humano, sexo, erótico. O paraíso as avessas. Um ou outro aluno vem tirar dúvida comigo, os que estão próximos a mim explico as frases de escritores ou filósofos para com o espaço. Um aluno comenta para mim que a censura é culpa da religião. Pecado. Realmente é necessário ter um leitura ampla para entender tudo sobre a forma de saber e arte. Um adolescente desprevenido poderia entender como peças sexuais e pronto. Uma turma chega e fala que tiraram fotos com Brennand, rara oportunidade que eles nem julgam  ter tido. Fico pensando nos mais jovens, como entenderão isso tudo. Brinquedos gigantes? Depois de ver a parte externa percorro as partes internas. As peças lembram os ex-votos de romeiros, potes e objetos utilizados no sertão. O tempo é esta se acabando, as horas voam.

  
Volte sempre:  O mapa que recebi mostrava informações sobre local da saída. Como sair daquilo que somos cativados? Aos poucos a turma se organiza num grupão, trocam informações e se descontraem. Queria refazer o percurso de novo. Não estou satisfeito, mas a hora é crucial com o dever de guia-los para a hora do almoço. No paraíso não há tempo, certo? Nem queria ter o compromisso de está chamando um ou outro que obedientemente vem. Desejava ficar solitário por ali e em silêncio. O olhar fixamente as peças, mergulhar nos detalhes. Quiça ler um livro, ouvir uma música que combinasse com o ambiente e as peças. A oficina já é parte da memoria sentimental. Na saída há um segurança que ainda comenta com o grupo, voltem sempre. Dentro do ônibus, o burburinho é onde vamos agora? A experiência será única para alguns no grupo, para mim levo a certeza de outras virão.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

A bicicleta


"Temos que nos identificar não com as pessoas que são parecidas conosco, mas com pessoas que tem desejos como os nossos" ( Gonçalo Tavares, escritor português)

Os habitantes da cidade se conhecem por aquilo que possuíam, o curioso nessa cidade é que todos  tinha pelo menos um objeto feito brasão para se identificarem e se reconhecerem. O homem anda pelas ruas fumando, dai outro vem com um cigarro e pede para acender. A comunicação secreta foi feita com os dois. O Mesmo acontece com o sujeito que caminha carregando um rádio no bolso. Alguém para e pergunta por qualquer notícia. Um velho usa chapéu e óculos escuro, alguém olha e comenta a beleza do chapéu,  pouco tempo depois está feita uma amizade. Ter alguma coisa manifesta o nosso desejo e aproxima as pessoas.
No meio disso havia o menino que gostava de ver as raras pessoas nas ruas passando com as bicicletas. O menino se sentia como numa ilha esperando pelo dia de ter uma bicicleta. Alguns indo trabalhar ou resolver qualquer coisa. Em certos locais se via uma  certa quantidade delas estacionadas, eram de todo jeito e com os tipos mais esquisitos. Aquilo inspirava a imaginação do garoto que acreditava no dia em que todos usariam somente bicicletas, pensava inocentemente ele. As bicicletas não eram maioria, as motos e dos carros dominavam e ditavam as regras do trânsito.Seria possível identificar quem era o dono pela originalidade que se cuidava dela? Assim, nasceu sua vontade de ter uma bicicleta e ser igual aos demais. O magnetismo eram tanto que seus olhos rodavam ao ver os pneus nas oficinas sendo consertados. Um mundo encantado admirado ao longo.
Só tinha o desejo realizado quando algum amiguinho lhe emprestava a bicicleta para pedalar pela rua. Sentia uma sensação de felicidade inexplicável com o vento batendo no rosto, a alegria  lhe vinha de forma estranha nas pernas. Sim, a bicicleta era transformadora das emoções humanas. Mas, isso durava pouco tempo e novamente ele punha os pés no chão. Certa vez, no período natalino, o menino escreveu bilhetes com a seguinte frase: Não esqueça da minha bicicleta. Pôs por todos os lugares da casa onde o pai poderia encontrá-lo. Na noite de Natal teve uma decepção em receber outro presente.
Ao ir à escola sabia ainda mais dessa diferença  de desejo dele e dos outros. No pátio ao ver os amigos chegando ou indo embora com as bicicletas e ele andando pela calçada lhe sufocava o desejo. Um dia como outro qualquer ao chegar da escola, o pai trouxe uma bicicleta que estava escondida na dispensa de presente. A alegria de recebê-la invadiu invadiu de fôlego o restando do dia. Pedalou até não querer mais. Foi à lugares mais distantes como um desafio a si próprio. A noite, resolveu "dar nome" ao objeto de encantamento, chamou de mimosa, enquanto passava um pano apaixonado por sobre ela.
Sua vida teve outro desdobramento depois de possuir mimosa. O corpo de homem ficou com cicatrizes das quedas e arranhões. Teve outras, mas foi o desejo por algo feito asas que batiam nos pés  que lhe transformou.  Inaugurou o homem dentro dele e o orgulho de ser mais um cidadão de um estranho objeto que lhe fazia a mágica de voar. A paixão que nunca passou na vida, mesmo depois de ser adulto. Andar de bicicleta era uma forma de permanecer na meninice sem ser censurado.

sábado, 13 de agosto de 2011

Os donos da televisão

    


" Tu, saudades, revives o passado, reacende extinta felicidade."  (Oscar Ribas, Cultuando Musas)


      Não tinham televisão na cidade, mas já havia a casa mais arrumada da rua para recebê-la. A filha mesmo sem ter televisão acreditava ser diferente dos outros moradores. Desfila na calçada com bonecas de marca, brincava na área com quebra-cabeças, jogos educativos, montava casinhas de brinquedos. Quando estava com os amigos falava dos lugares que nenhum outro menino ou menina da vizinhança poderia ir. Contava como foi a ida ao circo e o espetáculo. Tinha uma memória incrível ou quiça imaginação, pois conseguia descrever cada apresentação com tantos detalhes que chegava a silenciar todos em volta dela. Se fosse ao parque de diversão na cidade narrava como uma aventura que jamais nenhum ouvinte poderia ter ido.  Tudo isso era contado com um pirulito, chiclete ou qualquer doce levado a boa. A superioridade da menina se completava na educação: A menina  estudava num colégio em outra cidade próxima de causar inveja as amigas.
       Certa vez avisou como uma notícia extraordinária aos amigos que o pai estava em São Paulo e iria trazer uma televisão. Todos ficaram num silêncio de auditório ao saber da notícia. O reinado da menina perfumada seria maior. E quando voltou de viagem trouxera a novidade em cores. Um encanto que atraia a todos quando ligada, as imagens fascinavam adultos e principalmente o imaginário das crianças. A menina se deu ao luxo de escolher quem poderia ir a sala e assistir ao sítio de pica-pau amarelo. Chegava no meio do grupo de crianças e apontava dizendo: Amanhã  lá em casa, você, você...e você e também você, podem irem assistir televisão comigo . Os demais meninos e meninas ficavam tristes. Quando chegava a hora, todos os outros corriam para a casa dela. Esperava que alguém não fosse ou faltasse para substituir a esse privilégio. A menina mandava entrar os escolhidos e ordenava a onde deveria se sentarem no chão. Depois ficava deitada no sofá da sala. Os outros que não foram convidados ficavam no lado de fora, na calçada, tentavam em vão olhar pela fresta das janelas para verem o capítulo do dia. A menina percebia o barulho e abria as janelas para poderem observarem por um momento o sítio do pica-pau amarelo. Mas mudava de humor e com raiva de qualquer coisa, ela fechava violentamente as janelas na frente dos meninos e meninas. Isso se repetia constantemente sem ninguém reclamar e por terem o prazer de assistir a televisão que chegava naquele lugar.
          Acontece que um dia o poder de controlar a imagem se acabou. Na praça da igreja foi construída um pequeno local e colocado uma televisão mais simples, porém para todos. Assim, ao entardecer, como num passe de mágica, aparecia  o vigia da praça que vinha lentamente e tranquilo e com cara de mandão. Subia num banco de madeira e abria a janela com uma chave. Depois ligava a televisão. Os meninos e meninas corriam para se sentarem igualmente no chão de areia e ali assistir ao sítio do pica-pau amarelo. Nenhum menino ou menina foi mais a casa dela, preferiam ficar com os amigos e verem as aventuras de Pedrinho, Narizinho, Visconde e Emília pelos reinos. Brincarem e imitarem os personagens. A menina ficava em casa sozinha e o que é pior sem ninguém ao redor.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Coisa de duas peles ( parte final )


"Como eu queria a madrugada, toda a noite aos livros lia para esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais" ( Edgar Alan Poe) 



O médico e a moça tornaram-se apaixonados um pelo outro e amantes dos livros que cada um trazia. Agora além dos livros, eram trocadas cartas com juras e promessas. As vezes, um ou outros pedia desculpas por algo.  Esperavam por um tempo mais seguro para o médico fazer uma visita a mãe e pedir a moça em noivado e depois casamento.  Casar e viverem numa cidade mais calma, quiça morar numa fazenda afastada da cidade. Viajarem para lugares nas férias, terem filhos e viver um ao lado do outro.
A moça resolveu contar para a mãe a paixão avassaladora. Com os olhos cheio de brilho, dizia como estava curada da estranha doença e que agora amava um homem. A mãe cética e racionalista por demais, ouvia tudo sem cortar em nenhum momento a moça. Ao final, disse que iria com ela conhecer o tal médico. 
No dia do encontro, o médico foi avisado de surpresa da chegada da amada e da mãe. Não teve tempo em arrumar nada e ficou até um pouco nervoso com a presença da ambas. Ao entram no consultório, o médico se levantou da cadeira e estirou a mão para a mãe da moça amada. Séria, a mãe apertou ligeiro e logo se sentaram todos. Fez-se um silêncio dentro da sala que dava para ouvir o barulho no corredor da clínica. A quebra do silêncio veio com a moça falando sobre a mãe. O médico continuou dizendo  o que tinha se passado naqueles  meses todos, destacando a relação de ambos pelo gosto de ler. A mãe trocava o olhar com o médico para em seguida olhar a filha. Dentro de si, ela não aceitava aquela união. Sua única filha se casar com um negro, embora fosse médico. Jamais permitira que a família tivesse descendentes morenos e quiça negros. Manteria a linhagem dessa gente diferenciada que há aos montes no Brasil. Astutamente, conversou uma ou outra coisa para amenizar o clima.
Saindo do consultório, foi logo falando para a filha em tom de cólera que não iria permitir mais nenhuma aproximação e nem se quer o casamento deles. A moça se sentiu refém da mãe e de todo o preconceito de pele. o médico buscou encontrar a amada, mas a mãe foi quem o recebeu no portão. Friamente disse que não abençoava aquilo, que buscaria a justiça caso o médico insistisse em voltar a casa dela. O médico pediu uma explicação ao que a mãe com um sinal mostrou a pele dele. 
Seus olhos entraram em desespero e compreenderam que para o amor se realizar teria que desconstruir uma preconceito social gigantesco e dali em diante saberia que não veria a amada. Os contatos foram todos cortados lentamente como também devagar foram reaparecendo as manchas em seu rosto. A moça foi definhando sem amolecer o coração da mãe. O véu voltou ao seu rosto e o silêncio a seus lábios. Vestiu-se de negro e esperou a morte chegar calma enquanto dormia. Quando o médico soube que sua amada tinha falecido, fez seu último gesto: pegou todos os livros que possuia e enviou para serem substituidos no lugar das flores ornamentais.