sexta-feira, 13 de maio de 2011

A identidade




O país inteiro só começa a funcionar após o carnaval e ele vivia aos pedaços numa nação quaresmal.  Qualquer feriado prolongado não modificava em nada vida e os afazeres. Somente o carnaval lhe causava uma sensação de indiferença.  Dessa vez decidiu ir a  Recife e ver se voltava novo do que era até aqueles 33 anos.  Planejou tudo, organizou o orçamento, compra da passagem e reserva de hotel. Cumprindo a devota rotina diária, esperou o dia chegar em que embarcariam para a cidade.
Ao chegar à capital permanbucana, entrou num táxi e se dirigiu ao hotel no centro. Com um guia em mãos, leia uma a uma as apresentações e os espetáculos como devoto tem a bíblia. Poderia escolher as opções sem remorso de perda de tempo, aliás, o sentimento que vinha era de liberdade depois de anos de um certo inesplicavel cativeiro sem grades e que se inaugurava nos quatro dias de momo.
Consolou-se ao por os pés no apartamento, deixar as malas num canto e deitar-se na cama de braços abertos. Pensou: Cheguei. Fechou os olhos. Por segundos mergulhou na escuridão do infinito e sentiu a respiração como algo novo tivesse a acontecer e nem mesmo saberia explicar.
Abriu as pálpebras e ficou em pé. Foi até janela e viu a cidade. A decomposição do mangue deixava o ar insuportável misturado à cena urbana. Isso lhe causou tonteira que quase vomitou. Resolveu caminhar pelas ruas. Saiu do hotel. A pressa das pessoas despertava a felicidade em ver e não ter a mesma obrigação. As cores pareciam novas, embora as paredes fossem sujas e encardidas. Os traços da arquitetura dos períodos e monumentos históricos eram refletidos nos espelhos d’água do Capibaribe. Afogou-se nesse turbilhão de imagens e aos poucos conseguiu ter consciência. Observou pontes, prédios e praças em encontro de pessoas. A audição lhe levou a ouvir os tons das vozes. Em seguida com uma enorme gargalhada que soou de algum lugar como um misto de medo e alegria no final da tarde veio feito ápice.
Já esquecido da hora, sabia que era verão. O suor escorria pelo corpo e lhe tirava do sério.  Poderia ficar inconformado com a temperatura e não ficou. Parou num bar e pediu uma cerveja. Foi bebendo aos goles gelados.  Faltavam encontrar as palavras certas nessa hora, o senso racional já se despedia deixando-o as percepções.
Os corpos que passavam na calçada pareciam dançar. O olhar se distrai a cada corpo que surgia feito um teatro: aqui e ali.  Um velho maltrapilho parou bem no meio da porta e com a mão estendida falou algo. Mas, o barulho o fez não entendia direito nada. Depois de minutos, ouviu o ecos: hoje, tem a noite dos tambores silenciosos. Se informou com o dono do bar sobre tal acontecimento e à hora.  Pagou a conta e saiu, ainda tinha tempo de perambular pelas ruas e pensar a frase de uma canção que dizia: você me abre seus braços e a gente faz um pais. 
Os ônibus e automóveis já não assustavam. Via as barracas de cachorro-quente, churrascos e batatas fritas fazerem um cordão por onde a multidão  se dirigia para os lugares. Passistas de frevo, maracatus retardados e giro de pessoas em cirandas se apresentavam em cada canto e nos palcos. Teve uma vontade enorme de gritar de tanta felicidade que sentia ali. Abraçar alguém, qualquer transeuntes que caminhavam. Não julgava e nem queria ser compreendida no meio da multidão que ficava cada vez mais compactar e homogênea. Esqueceu dos incômodos, dos sentidos e do calor. Absorvido por algo que ainda não sabia dizer o que era, mas com certeza lhe revelava a felicidade das outras que tinha sentido até então.
Chegou até a rua por onde acontecia a noite dos tambores silenciosos. Uma viela estreita em que as pessoas se espremiam em seu corpo. Braços roçando as costas, pés pisados por outros, empurrões na frente e atrás. Nada lhe incomodava. Se ajeitou num canto da calçada, ajeitou a camisa e viu de repente um maracatu se aproximar: negros, negras vinham vestidos como uma corte, tambores fortes pedindo passagem e o coração em disparada. Passaram e ficaram na porta da igreja. Depois outro maracatu até o último. Quando chegou meia-noite, as luzes se apagaram. Mãos levantadas e saudações em yoruba. Um mestre evocou com palavras desconhecidas, toques ritmados de tambores e pessoas caindo em estado de êxtase. Sacudiu a cabeça para ter mais consciência da experiência. A multidão estava em silêncio ao mesmo tempo, assistindo a apresentação. Guardava todas as percepções e era como se tivesse milhares de olhos, ouvidos, bocas...o corpo se diluía e se alastrava, mas permanecia imóvel e a rua parecia livre.
Terminada a exibição, verificou que não tinha história, nem possuía nome ou se quer memória, a absorção por parte do ritual lhe levara toda a vida que fora até o momento. Nasceu no meio da multidão. Consolou-se um pouco para ver se aprendia novamente a consciência e nada, mas isso não vinha. Tirou do bolso um papel sujo. Algumas moedas e dinheiro, não possuía os documentos. E assim, sentiu novamente que através da nova experiência, uma identidade se desenhava pelo silencio dos tambores.

Um comentário:

lais disse...

oi costinha adorei o seu texto e concordo com voce tudo so volta ao normal depois do carnal