"Nada passa, nada expira. O passado é um rio que dorme e a memória uma mentira multiforme."
(José Eduardo Agualusa)
O rio Mossoró teve lavadeiras nas margens que cortam a cidade. Hoje, elas fazem parte do imaginário idílico dos freqüentadores, defensores e poetas. Diariamente lavava umas, noutros dias variava. O cenário se compunha a cada dia, mês, ano: Mulheres e bacias de roupas lavadas que com o serviço sustentaram famílias.
Sete horas da manhã, Maria Bela renovava-se na pedra herdada das antepassadas. Quando chegava, as lavadeiras brandiam uma as outras: abram passagem, lá vem Maria Bela. Trouxa de roupa na cabeça, menino Genésio segurado numa mão. Andar em direção a margem. Depois de se desfazer do carregava, seu dedos tocavam o rio com o sinal em cruz. As mãos se abriam em prece a murmurar o mantra: “Oxalá faça bom tempo...”.
O nó da trouxa era desfeito e ia molhando peça por peça. Passava o sabão acariciando cada roupa e torce-as. Batia ritmado com força na pedra. O barulho e a surdina se alternam no movimento dos braços. Quebrava-se um encanto da razão. Deixava de molho na bacia as peças brancas com a pedrinha de anil. O azul da água e do céu se espelha na alquimia nesse momento. Em seguida, o enxague e novamente torcia com força. Maria Bela acumulou durante anos a sabedoria e a arte de fazer espumas e desfazê-las sem gota nenhuma.
Cada peça é estendida com cuidado nas cercas, demarcando o território entre as lavadeiras. Enquanto vai colocando, cantava-se outra herança de solar. A maior proeza foi conseguir dá sentido à margem das águas doces. Poliu o tempo a força na pedra e suor em tirar manchas e alvejar mais branco o encardido.
Guardava para si que as roupas carregavam a alma dos donos e no rio todas as diferenças da cidade nas águas se igualavam. Maria Bela era analfabeta, só sabe lavar as sujeiras. Tem certeza que lavar é igual a ler e escrever. Esperava sem saber quando poderia pegar numa folha e encher a brancura do papel com letras e dá vida. Também sabia que como ela, o rio não é o mesmo. Tem a certeza de que as águas se renovam a todo instante e a pessoa não é sempre a mesma quando se banha e se lava. Ambos estão mudados.
Depois da jornada, Maria Bela recolhe as camisas, calçadas e tolhas para passar a ferro quente. A paisagem do rio compõe outros personagens e histórias. A correnteza levou o tempo dos pescadores com canoas e redes, suicidas das pontes e trouxe crianças para se banhar. Mulher e rio se confundem na labuta e na eternidade.
2 comentários:
Belíssimo texto, respingado de Guimarães Rosa. Parabéns, Costinha.
Muito boa a comparaçao do rio e as lavadeiras. A visão do real/imaginário através do concreto que faz parte da nossa identidade potiguar. ADOREI.
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