segunda-feira, 27 de julho de 2009

O SEGREDO DE FÁTIMA

Antes de dormir, o telefone toca insistentemente. A voz é rápida na mensagem: Pode preparar a roupa preta. Amanhã bem cedo vamos ao velório... A mãe dele morreu. Fico alguns segundos em silêncio para confirmar que irei e depois marco o horário de passar na casa dela. A notícia caminhou comigo até o quarto e antes de fechar os olhos na cama, e assim como adormeci com a consciência disso, também acordei com o mesmo pensamento em luto. Até parecia que isso estava acontecendo comigo e de fato a existência de rituais fúnebres vinha em seqüência. Lembrei do último velório que fui e dos parentes já sepultados. O velório voa se somando com o tempo.
É de manhã, o dia esta só começando, mas o calor já se espalha nos cantos da casa e na cidade. Era preciso levantar-se, vestir-se e ir. Planejo o que deveria fazer enquanto bebo café. Quando chego ao portão da casa, toco a campainha, demora-se a atender. A mãe me recebe com o sorriso rápido e manda entrar. Fico na área como costumeiramente faço: ... Ainda está no banho. Imagino que cante no banheiro, do jeito que é. Sorrio sozinho. Na espera solitária, a mãe trás um material da faculdade que ela faz, mostra as disciplinas e se diz entusiasmada. Minutos depois, aparece esfuziante na minha frente, cabelos molhados e com uma blusa escura. Diz: Estou quase pronta. Vira-se e volta para dentro de casa, não me deixa falar e retorna com uma bolsa. Saímos pelas ruas vazias em direção ao terminal de ônibus, enquanto andamos apressados, me conta detalhes de como recebeu a notícia, de onde era o local que já não sabia ou tinha esquecido e que tenta loucamente ligar para num sei quem, mas que deve está dormindo a essa hora e que não tomou café e isso e aquilo. Não é irritação. É o seu jeito de existir. Chegamos ao terminal de ônibus, uma pessoa da empresa informa que o coletivo acabou de sai e vai dar a volta pela cidade. No mesmo instante nos dirigimos rapidamente a uma padaria da esquina, ela compra um achocolatado e salgados: uma empada e uma coxinha. Olho admirado e falo: é muito! Ela diz desaforadamente: no meu estômago cabe mais. Seria uma forma de superioridade e dominação em mim.
Fomos até a parada de ônibus, passa um alternativo e desistimos, ela ao telefone descobre o nome da funerária e local exato. Tenho a impressão de está perturbada, não tem aquele ar cômico e romântico das vezes que nos encontramos. Pegamos o coletivo lotado, motivo suficiente para dizer: não vou tomar o café. Umas quatro vezes e que se encontra dentro da bolsa em pé. Acredito que o café dela a essa altura seja uma mistura de tudo que foi comprado. No percurso, de dentro do ônibus, vai me mostrando um local onde morava a avó que subia uma ladeira para lavar roupa. Dá alguns detalhes da vida da ancestral e fala laconicamente que não sabe o que vai fazer quando o pai, a avó ou a mãe morrer.
As pessoas começam a descer, ela se ajeita numa cadeira vazia e faz o seu café da manhã ali mesmo sem cerimônia. Devora a empada educadamente que se esfarela na blusa e na bolsa feito confete de carnaval, bebe ritualmente o achocolatado, me entrega a cochinha: toma, come isso! Tô cheia. Enquanto como, falo de uma colchinha que já experimentei na escola que trabalho, mas pouco adianta, o pensamento dela dá círculos em torno do momento de encontrar o amigo no velório. Ainda comenta baixinho: ele não merecia isso... é um irmão que eu não tive. Ao contrário daquele traste lá de casa. Como se pensasse consigo mesma e eu fosse apenas uma caixa de ressonância.
Enfim... descemos no lugar mais próximo, a rua está movimentada. Não era de se estranha, pois se tratava de um bairro de vendas populares. Os camelôs de CDs e DVDs aproveitam a situação, expõe músicas e vídeos de Michael Jackson. Gritos, Uivos e batidas sonoras nos saúdam pelas calçadas. Comentamos sobre a morte dele. Fazemos um zig-zag entre transeuntes, ambulantes e vendedores. Sons, imagens e todo o tipo de aguçamento dos sentidos nos afetas como um bombardeio.
O tempo é curto e rapidamente chegamos a funerário. Na casa funerária, nos informam onde se localiza o centro de velório. Andamos mais um pouco e chegamos lá. São várias alas que são denominadas de capelas. O corpo está sendo velado na última dela. Assim que adentramos, ela o avista logo visivelmente abatido, olhar cansado, voz tristonha e entre soluços e lágrimas nos acolhe. Outras pessoas se aproximam e cumprimenta-o, ele nos leva até o caixão e um ar sacro e silencioso nos toma naquele momento.
A pequena imagem de Nossa Senhora de Fátima está na parte de cima, a mãe dele esta coberta com um véu branco entre flores que lembra a própria santa. Tem o onomástico Maria de Fátima. Ele irrompe minha observação contando como foi o processo de falecimento, os anos em que lutava contra o câncer. Pensei que iria repetir a mesma história varias vezes naquele dia para todos que chegassem lá.
Ainda tive tempo de lembrar quando no dia posterior ao domingo das mães. Ele tinha me dito que ela contou algo em particular que o impressionou bastante. Guardei isso como quem esconde um segredo. Naquele momento não ousei buscar a revelação. E mais gente vem chegando. Sentamos numas cadeiras próximas ao caixão, ela já observa as velas e diz indignada para mim: as velas não são reais.
O rapaz chegou e sentou em volta dos amigos da faculdade, emocionado e perplexo com a cena em que ele dirigia e também era guiado pelas horas. Timidamente e melancólico relata fatos e acontecimentos. Aproveitei da minha pequena libertinagem e comecei a falar sem o rigor da ocasião. O que dizia levavam ao riso contido das pessoas e do próprio órfão, embora tivesse lágrimas nos olhos. Nunca fui medroso em relação à alma e aos mistérios da pós-vida. Por sua vez, percebia que ela se contorcia por dentro e tinha um comentário final para os casos que se dizia. Aos poucos, os desconhecidos das cadeiras se dirigiam com perguntas para mim. Os nomes apareciam e outros se despediam.
Novas pessoas iam chegando e ele atendia a todos, levando-os ao corpo fúnebre. Ela observava os transeuntes e nesse olhar que vasculha encontrou o que buscava. Reparou o irmão dele. Cutuca-me e diz baixinho a mim: “Adorei, o irmão dele.” E gradualmente se confundia as cenas que oscilavam nas circunstâncias das palavras que eram brotadas. Por ser quem é, ele humoradamente me ameaça: “mando você rezar”. Certo calor acentua as horas que estão em processo. Esta manhã não tinha fim, penso isso enquanto ajeito minha camisa. Seriam as primeiras horas da desfiliação e da orfandade de um rapaz e eu participava daquele rito. Quais os mistérios que povoam essa celebração ou só haveria um único e infinito mistério nos circulando?
Ouviam-se inutilmente os rumores e cochichos das pessoas. Novos choros contidos, apertos de mãos e gente assinando o livro de presença. Homens de termos chegando a passos lentos e outros saindo. Em dada hora, acredito ter ouvido um galo cantar. Nesse instante impreciso, percebi que a celebração eucarística começou. Todos espontamente se aglomeram em volta do sacerdote e da mesa ao lado do caixão. Nesses momentos se acentuam a dor das emoções.
Assim ocorreu... e todos nós saberemos uma dia.

3 comentários:

Niick Barreto disse...

tocante ein costinha?? esses mistérios da vida e a morte, só iremos descobrir no dia em q realmente participarmos deles!

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Evoca realidade dura e cura da essência humana.Somos dominados por pensamentos que nos bombardeiam incessantemente sem que os controlemos. Uns têm suas origens nas profundezas misteriosas da alma e nos tornam pássaros selvagens; logo depois, surgem os pensamentos bestiais, igualando-nos com pássaros domesticados...tudo numa fração de segundos!Conseguimos experimentar todas as sensações narradas (temperatura, pressa, sons , ruidos, cheiros, olhares, expressões faciais, cenários...).É uma leitura viva. Quanto ao mistério...sugere possibilidades futuras de revelações.E não é isso que todos nos aguardamos????Parabéns. Um abração.